domingo, 9 de setembro de 2012

A busca da identidade na adolescência

É na puberdade que o jovem reconstrói seu universo interno e cria relações com o mundo externo. Entenda os processos que marcam a fase

Ana Rita Martins (novaescola@atleitor.com.br
Ilustração: Daniella Domingues
ALINE Essa sou eu?Qdo o corpo cresce, assusta. Evolui rápido... Acho que eu não tava preparada, me sinto estranha. Queria conversar, mas não falo com meus pais sobre isso.Ilustrações: Daniella Domingues
A transformação tem início por volta dos 11 anos. Meninos e meninas passam a contestar o que os adultos dizem. Ora falam demais, ora ficam calados. Surgem os namoricos, as implicâncias e a vontade de conhecer intensamente o mundo. Os comportamentos variam tanto que professores e pais se sentem perdidos: afinal de contas, por que os adolescentes são tão instáveis?

A inconstância, nesse caso, é sinônimo de ajuste. É a maneira que os jovens encontram para tentar se adaptar ao fato de não serem mais crianças - nem adultos. Diante de um corpo em mutação, precisam construir uma nova identidade e afirmar seu lugar no mundo. Por trás de manifestações tão distintas quanto rebeldia ou isolamento, há inúmeros processos psicológicos para organizar um turbilhão de sensações e sentimentos. A adolescência é como um renascimento, marcado, dessa vez, pela revisão de tudo o que foi vivido na infância.

Para a pediatra e psicanalista francesa Françoise Dolto (1908-1988), autora de clássicos sobre a psicologia de crianças e adolescentes, os seres humanos têm dois tipos de imagem em relação ao próprio corpo: a real, que se refere às características físicas, e a simbólica, que seria um somatório de desejos, emoções, imaginário e sentido íntimo que damos às experiências corporais. Na adolescência, essas duas percepções são abaladas. A puberdade (conjunto das transformações ligadas à maturação sexual) faz com que a imagem real se modifique - a descarga de hormônios desenvolve características sexuais primárias (aumento dos testículos e ovários) e secundárias (amadurecimento dos seios, modificações na cintura e na pélvis, crescimentos dos pelos, mudanças na voz etc.). Falas como a de Aline*, 14 anos (leia o destaque na imagem acima), indicam a perda de segurança em relação ao próprio corpo. É comum que aflorem sentimentos contraditórios: ao mesmo tempo em que deseja se parecer com um homem ou uma mulher, o adolescente tende a rejeitar as mudanças por medo do desconhecido.
Isso ocorre porque a imagem simbólica que ele tem do corpo ainda é carregada de referências infantis que entram em contradição com os desejos e a potência sexual recém-descoberta. É como se o psiquismo do jovem tivesse dificuldade para acompanhar tantas novidades. Por causa disso, podem surgir dificuldades de higiene, como a de jovens que não tomam banho porque gostam de sentir o cheiro do próprio suor (que se transformou com a ação da testosterona) e a de outros que veem numa parte do corpo a raiz de todos os seus problemas (seios que não crescem, pés muito grandes, nariz torto etc.). São encanações típicas da idade e que precisam ser acolhidas. "O jovem deve ficar à vontade para tirar dúvidas e conversar sobre o que ocorre com seu corpo sem que sinta medo de ser diminuído ou ridicularizado. Além disso, ele necessita de privacidade e, se não quiser falar, deve ser respeitado", afirma Lidia Aratangy, psicóloga e autora de livros sobre o tema. Apenas quando perduram as sensações de estranhamento com as mudanças fisiológicas um encaminhamento médico é necessário.

O afastamento dos pais revela a necessidade de outros modelos

A dificuldade em lidar com o corpo está diretamente relacionada à nova relação que o jovem tem de construir com seus pais. Isso porque, na adolescência, o amadurecimento sexual faz com que o Complexo de Édipo, descrito pelo criador da Psicanálise, Sigmund Freud (1856-1939), seja revivido. De acordo com Freud, a criança desejaria inconscientemente tomar o lugar da mãe ou do pai no par amoroso. Como eles são as primeiras referências masculinas e femininas que a criança tem, ao querer substituir uma delas, a relação com o "concorrente" fica confusa, alternando-se entre o amor e ódio - o que pode, mais tarde, fazer com que a pessoa tenha dificuldades no relacionamento amoroso. Se a criança aceita o fato de não poder se unir ao pai ou à mãe, ela passa a lidar de forma equilibrada com as duas referências e internaliza a proibição do incesto.
Na adolescência, resquícios de um Complexo de Édipo mal resolvido podem vir à tona. Surge daí a necessidade inconsciente de buscar outros modelos de homem e mulher além do pai e da mãe. O distanciamento também é uma forma de reelaborar a imagem idealizada dos pais e provar que não se é mais criança. "Esse comportamento serve para que o adolescente exercite a definição de uma identidade baseada em experiências mais amplas", diz Miguel Perosa, terapeuta e professor de Psicologia da Adolescência na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Isso não quer dizer que o adolescente não possa ter saudade da dependência infantil e de comportamentos que aludam a ela. Mas, uma vez nessa fase, ficam cada vez mais constantes as saídas em grupo e a oposição verbal e física às referências paternas e maternas, como indica a fala de João*, 13 anos (leia o destaque abaixo).
Ilustração: Daniella Domingues

JOÃO Meu pai ñ me entende!Meu pai e minha mãe sempre me seguram em ksa... É um saco... Quero sair com meus amigos e eles ficam implikando. Cansei de ficar em ksa conversando com eles. É sempre a mesma coisa. Eles querem que eu tenha a vida + chata do universo!
Na sala de aula, é importante estabelecer limites quando o adolescente adota uma postura de confronto para se afirmar ou quando transforma o professor em referência masculina, feminina ou de comportamento. No primeiro caso, deve-se escutar o que o adolescente tem a dizer - valorizar sua voz é abrir as portas do diálogo -, mas também apontar as normas de conduta da instituição e do convívio civilizado. No segundo, a melhor saída é chamar a atenção para aquilo que há de positivo no comportamento do próprio jovem. Assim, ele poderá começar a reconhecer nele mesmo traços da identidade que constrói.



No mundo interno, o peso do julgamento dos outros diminui .

Tantas descobertas fazem o adolescente ter de remanejar constantemente as novas relações socioafetivas que incorpora à vida. Ele descobre que lidar com o olhar do outro, com um corpo que não para de se desenvolver e com conflitos sobre sua própria identidade gera angústias que precisam de tempo e espaço para serem elaboradas. E aí o jovem se volta para seu mundo interno, como faz Camila*, 14 anos (leia o destaque abaixo). Lá, ele pode rever tudo o que se passa num espaço próprio, a salvo do julgamento dos outros. Esse contato com a subjetividade é essencial para sedimentar suas vivências - desde que o adolescente não substitua as relações do dia a dia por um isolamento permanente. "Nesse caso, professores e pais devem se aproximar, já que a ruptura com a infância pode deixar um vazio depressivo muitas vezes perigoso", explica Maria Cecília Corrêa de Faria, terapeuta especializada em Psicologia Clínica.
Ilustração: Daniella Domingues
CAMILA Pensando na vidaEu me sinto sozinha a toda hora... Daí vou pro meu quarto e fico pensando na vida. Acontece tanta coisa q é difícil entender! Eu sinto milhões de coisas ao mesmo tempo. Ficar sozinha ajuda a pensar nelas.
A exploração do mundo interior, além do reajuste emocional, também favorece a intelectualização. A psicanalista Anna Freud (1895-1982) concluiu que, para fugir momentaneamente das pulsões sexuais, os adolescentes costumam transferir essa energia para a racionalização e incorporação de informações. Não à toa, eles adoram emitir opiniões sobre tudo. Nesse caso, também deve-se atentar para os exageros. Aquele aluno que se preocupa de forma exagerada com o desempenho na escola pode estar querendo fugir de questões internas com as quais tem muita dificuldade em lidar.
O fato é que, apesar de ser um processo difícil, confuso e doloroso, a adolescência é um período em que se descobre como usar novas ferramentas emocionais para se relacionar com o mundo. À medida que integra as concepções que grupos, pessoas e instituições têm a respeito dele, compreendendo e assimilando os valores que constituem o ambiente social, o jovem reforça o sentimento de identidade. A escola tem um papel fundamental nesse processo. Ela jamais deve reduzir o comportamento do adolescente à pecha de rebeldia. Integrá-lo e respeitá-lo são as melhores formas de educar seres humanos confiantes e sadios.

Os destaques desta reportagem trazem depoimentos por um programa de troca de mensagens instantâneas pela internet de alunos do 9º ano da EMEF Victor Civita, em São Paulo. Os nomes foram trocados para preservar a identidade dos entrevistados.

Desafios de uma fase de ensino pouco explorada

Pesquisa coloca luz sobre as particularidades dos anos finais do Ensino Fundamental, em que ocorrem inúmeras mudanças na rotina escolar e na vida dos alunos


Desafios de uma fase de ensino pouco explorada. Ilustração: Gabriel Lora
Quando se buscam informações sobre as características da Educação Básica, é fácil encontrar um grande número de estudos sobre os primeiros anos do Ensino Fundamental, com ênfase no período de alfabetização. Educadores se debruçam sobre os pequenos que estão começando a vida escolar e buscam maneiras de garantir a eles uma aprendizagem significativa. Na outra ponta, são comuns também pesquisadores interessados em entender quem são e o que pensam os jovens que cursam o Ensino Médio, como eles se relacionam com o conhecimento e quais as expectativas que têm a respeito do futuro.

Pouco se fala, no entanto, sobre o segmento que liga esses dois extremos: os anos finais do Fundamental. Deixada de lado por grande parte dos estudiosos da área, essa fase enfrenta atualmente uma série de desafios na tentativa de encontrar uma identidade própria, capaz de dar conta de estudantes que estão deixando de ser crianças, mas ainda se encontram bem distantes da idade adulta.

Com foco nessa lacuna, foi lançada a pesquisa Anos Finais do Ensino Fundamental: Aproximando-se da Configuração Atual, da Fundação Victor Civita (FVC) em parceria com o Itaú BBA e a Fundação Itaú Social, realizada pela Fundação Carlos Chagas (FCC). Trata-se de um estudo exploratório com o objetivo de apresentar um panorama dessa fase e propor temas a serem aprofundados por outros pesquisadores. "A intenção foi apontar especificidades e desafios e, igualmente, subsidiar novos estudos sobre uma fase tão pouco investigada", diz Marina Muniz Rossa Nunes, pesquisadora da FCC, uma das autoras do estudo e orientadora educacional do Colégio Santa Cruz, em São Paulo (leia o relatório final da pesquisa).

Organizado em três etapas, o trabalho começou com um levantamento sobre o que tem sido proposto como orientação pública para os anos finais do Ensino Fundamental e uma análise de dados nacionais e regionais sobre essa fase, de modo a deixar claro qual a dimensão dela dentro da Educação Básica brasileira (leia o panorama abaixo). Em seguida, foram reunidas referências sobre as transformações vividas por crianças e adolescentes de 11 a 14 anos.

Informações teóricas analisadas, era o momento de ir a campo. A equipe escolheu duas escolas em São Paulo e duas em Maceió e, nelas, realizou entrevistas com docentes e alunos que hoje cursam o 9º ano, perguntando como avaliam o segmento que estão concluindo.

Para terminar, um relatório preliminar do estudo foi apresentado a um grupo de especialistas que analisou o material e trouxe contribuições para aprimorá- lo. "Pesquisas como essa são importantes por trazer informações para ajudar a melhorar a formação de professores", comenta Rosana Louro Ferreira Silva, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP), docente da Universidade Federal do ABC e uma das participantes do encontro.

Para começar, um pequeno histórico desse segmento

Entender os desafios do 6º ao 9º ano pressupõe conhecer os caminhos trilhados para chegarmos à configuração atual. Até 1970, o ensino obrigatório restringiase às quatro séries iniciais da escolaridade, que compunham o chamado primário. Para dar continuidade aos estudos, o aluno tinha de ser submetido a um exame de admissão para o ginásio. A avaliação funcionava como uma peneira capaz de reduzir drasticamente o número de estudantes no sistema, mantendo apenas aqueles com condições sociais e econômicas mais favorecidas. "Os professores traziam consigo a ideia de que iam trabalhar com alunos que já estavam prontos para estudar", explica Bernardete Gatti, pesquisadora-colaboradora da FCC e consultora técnica da FVC.

O cenário começou a mudar a partir de 1971, com a ampliação da escolaridade obrigatória para alunos de 7 a 14 anos, o fim dos exames de admissão e o aumento das vagas na rede pública.

Nesse período, o primário e o ginásio foram agrupados em um mesmo nível de ensino denominado primeiro grau. Isso, no entanto, não foi acompanhado por uma reorganização da escola, de modo a articular melhor anos iniciais e finais. "Essa ausência de continuidade retrata- se, nos anos 1980 e 1990, na reprovação e na evasão generalizadas entre a 4ª e a 5ª série", relembra o estudo.

Muitos anos se passaram, houve avanços importantes, como a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), em 1996, mas os problemas de descontinuidade e de fracasso escolar não foram resolvidos.

Questões imprescindíveis que continuam sem solução

O que se vê ainda hoje é uma ruptura considerável na rotina escolar dos anos iniciais para os anos finais e muita indefinição sobre como organizar essa fase. Embora haja políticas públicas federais, estaduais e municipais voltadas à Educação Básica, não há uma preocupação específica com o período do 6º ao 9º ano. Os anos finais "continuam esquecidos, comprimidos entre a primeira fase do Fundamental e o Médio", diz o estudo.

A articulação entre as fases da Educação é garantida pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (DCNEB), propostas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2010 com o objetivo de assegurar a continuidade dos processos de aprendizagem e o desenvolvimento cognitivo, emocional, social e moral dos alunos. Apesar disso, a integração ainda é um ponto vulnerável. Existem, é claro, iniciativas regionais de destaque, mas o país ainda carece de uma orientação geral. Entenda, nas próximas páginas, quais aspectos característicos dos anos finais devem ser incorporados ao debate.
Em números
Entenda quem são os alunos e os professores que fazem parte dessa fase do Fundamental

Distribuição Número de estudantes e docentes dos anos finais do Ensino Fundamental, dividido por região.
Número de estudantes e docentes dos anos finais do Ensino Fundamental, dividido por região. Ilustração: Gabriel Lora
BrasilFonte MEC - Censo Escolar 2011
ícone azul
Alunos 13.997.870
ícone laranja
Professores 793.889
Alunos

Localização Maioria estuda na zona urbana
Alunos - localiazação. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2011
Divisão por rede Estadual ainda é a que mais atende a esse segmento
Alunos - Divisão por rede. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2011
Atraso escolar Distorção idade-série é um problema
Alunos - Atraso escolar. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2010
Professores

Idade Fase tem docentes de diferentes faixas etárias
Professores - Idade. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2011
Formação A maior parte deles tem curso superior completo
Professores - Formação. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2011
Horário Maioria trabalha em um turno
Professores - Horário. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2011
Escolas Em geral, eles atuam em apenas uma instituição
Professores - Escolas. Ilustração: Gabriel Lora
Fonte MEC - Censo Escolar 2011